Conversação Mediada pela Computação
Vivemos em uma época de profundas mudanças em nossa sociedade, influenciadas pelo desenvolvimento das tecnologias digitais em rede. Por meio de diferentes dispositivos e sistemas, conversamos com qualquer pessoa praticamente a qualquer hora e local, exceto por alguns refúgios que permanecem desconectados e isolados de nossa sociedade em rede. A conexão está tão disseminada que perdemos a distinção que se fazia no início deste século sobre os momentos em que estávamos ora online e ora offline. Agora vivemos conectados o tempo todo.
Sociedade em redeManuel Castells, no livro A Sociedade em Rede (1996), lançado no início da abertura da internet para uso comercial, já defendia que estamos passando por uma revolução social causada pelo uso cada vez mais disseminado das redes de computadores. As tecnologias de informação e comunicação digital, desde a década de 1970, estão transformando, de forma global e profunda, os diversos aspectos das relações humanas: trabalho, economia, cultura e espaço-tempo. Nicolaci-da-Costa, no livro Na Malha da Rede (1998), analisa o impacto das tecnologias digitais em nossa sociedade, incluindo as alterações causadas pela internet no modo do ser humano pensar, agir, sentir e se relacionar com o mundo. |
É difícil imaginar, principalmente para os jovens, que poucas décadas atrás a troca de informações demorava dias para se realizar. Se quiséssemos trocar textos com um amigo ou parente distante, precisávamos usar o correio postal, e a carta demorava dias para ser recebida e outros tantos para que obtivéssemos uma resposta; às vezes essa interação demorava semanas. Para uma comunicação mais rápida, praticamente só podíamos contar com o telefone. Para nos atualizarmos sobre os acontecimentos ocorridos, na cidade e no mundo, era preciso recorrer aos veículos de comunicação de massa: emissoras de rádio e televisão, ou mídia impressa como os jornais e as revistas. E nossa opinião sobre os acontecimentos ficava restrita aos amigos ao nosso redor físico imediato (a menos que fôssemos repórteres, colunistas ou entrevistados de um desses veículos). A informação só circulava após passar por um filtro editorial.
Hoje nunca estamos sós, levamos em nosso bolso todos os nossos conhecidos, acessíveis a um clique do smartphone. Basta abrirmos o Facebook, por exemplo, para nos depararmos com inúmeras mensagens, enviadas a todo momento, sobre os mais diversos assuntos. Sabemos quais dentre essas pessoas estão disponíveis para uma conversa imediata. A mensagem da qual gostamos, comentamos e replicamos para nossos amigos. Participamos de comunidades e grupos para discutirmos nossos assuntos prediletos, e assim interagimos não mais restritos às pessoas fisicamente próximas. Não dependemos mais da mídia de massa para obtermos notícias, agora nós as recebemos pelos amigos, ou dos amigos dos amigos que testemunharam os fatos de perto. Somos emissores de conteúdo ao postar um comentário. Conversamos com multidões sem intermediários.
As conversas agora são realizadas pelos diversos serviços de conversação implementados em sistemas computacionais que usamos para interagir, para nos relacionar, opinar, registrar pensamentos, informar, vivenciar personagens, entre outras experiências. Trocamos mensagens de email com o uso de sistemas como Gmail ou Hotmail, publicamos nossos status no Twitter ou no mural do Facebook, conversamos com os amigos pelo WhatsApp ou por torpedos enviados pelos sistemas de SMS, comentamos nos blogs dos principais portais de notícias, discutimos nossos assuntos favoritos em listas e fóruns de discussão, como por exemplo nos grupos do Facebook, Yahoo Groups ou Google Groups, falamos olhando nos olhos de uma pessoa distante utilizando a videochamada em sistemas como Skype e FaceTime. Os sistemas contemporâneos, notadamente os sistemas de redes sociais, integram vários dos meios de conversação da internet popularizados nessas últimas décadas.
Os meios de conversação estão promovendo mudanças em diversos aspectos da sociedade. Os sistemas que implementam esses meios de conversação possibilitam a troca de mensagens entre consumidores e empresas; alunos, professores, pais ou responsáveis; eleitores e políticos. Dada a necessidade de compreender as novas práticas que estão emergindo em nossa sociedade, os sistemas e os meios de conversação se tornaram objetos de pesquisa em diferentes áreas de conhecimento. Precisamos de muitos olhares e perspectivas, diferentes enfoques e abordagens de pesquisa para compreendermos melhor os fenômenos emergentes na cibercultura, que é nossa cultura contemporânea mediada pelas tecnologias digitais em rede.
As tecnologias de comunicação e a história cultural da humanidade
As tecnologias de comunicação modificam a nossa relação com o conhecimento e a forma como compreendemos o mundo; modificam como percebemos os outros e a nós mesmos, e como nos relacionamos em sociedade. São tão profundas as implicações culturais e sociais que a história da humanidade pode ser organizada em função das tecnologias de comunicação. O filósofo Pierre Lévy as caracterizam comoTecnologias da Inteligência (1992), e destaca três grandes eras da humanidade: oralidade, escrita e informática.
Imagine como nossos ancestrais conseguiam se entender na época em que o ser humano habitava as cavernas. Para obter um entendimento comum, necessário principalmente para realizar atividades em grupo, precisavam recorrer à conversação face-a-face, o que requer a presença dos interlocutores no mesmo local e momento, e que emissores e receptores compartilhem a situação e o contexto conversacional. Nesta sociedade oral, que caracteriza a pré-história, toda a cultura e o conhecimento eram dependentes das lembranças dos indivíduos e dos lugares.
O desenvolvimento do alfabeto fez emergir a sociedade letrada. A escrita, desenvolvida por várias civilizações da antiguidade, modificou a nossa relação com o conhecimento, que passou a ser independente da memória dos sujeitos, da situação, do lugar e do tempo presente. O texto escrito é uma extensão da memória, a mensagem se mantém fora do contexto, é universal. Essa universalidade foi culturalmente interiorizada pelas civilizações e fundou a ciência e a filosofia. A imprensa possibilitou a mecanização do alfabeto, e a distribuição generalizada dos textos levou à explosão do saber, o que foi essencial para o estabelecimento da ciência como modo de conhecimento dominante.
Posteriormente vieram os meios eletrônicos de comunicação: rádio, cinema e televisão. A mensagem passa a ser recebida por milhões de pessoas, o que leva os emissores a elaborar mensagens que alcancem a todos; para tanto, o conteúdo deve exigir o mínimo da capacidade interpretativa dos receptores. Esses meios se baseiam na mensagem falada e visual e, sem o registro aos moldes da imprensa, assemelham-se mais à cultura da sociedade oral, quase tribal, mas em contexto global. Essa sociedade midiática constitui-se numa Aldeia Global, segundo McLuhan. Nessa sociedade de comunicação em massa, o telespectador recebe passivamente a mensagem, mantém-se isolado, não há ação, nunca é o protagonista.
A Aldeia Global de McLuhanNos livros A galáxia de Gutenberg (1969, original de 1962) e Compreendendo os meios de comunicação (1969, original de 1964), Marshall McLuhan apresenta sua visão de que as pessoas, por se comunicarem com qualquer um em qualquer parte do mundo, passariam a viver numa espécie de tribo globalizada, uma Aldeia Global. Esse conceito foi baseado na observação do fenômeno de popularidade da televisão e, apesar de proposto antes do desenvolvimento das redes de computador, é considerado como uma previsão do lançamento da internet – por isso McLuhan é chamado de “santo padroeiro da internet” pela revista Wired. |
O desenvolvimento da computação rompeu com a prática da comunicação universal fundada pela escrita. O desenvolvimento do suporte digital, baseado nos dígitos zero-e-um usados para representar qualquer conteúdo, possibilitou a convergência dos meios de comunicação – texto, imagem, áudio e vídeo convergiram para esse suporte. O conteúdo digital, imaterial e interativo, está modificando a escrita e a leitura. As redes de computadores estabeleceram o ciberespaço, que fez emergir a cibercultura. A distribuição da mensagem é instantânea e ubíqua, há facilidade de recuperação e edição, há a autoria coletiva e textos sem autores. O texto está fragmentado e não se caracteriza mais como um produto acabado bem delimitado. Diferentemente da escrita universal, a mensagem encontra-se contextualizada em comunidades virtuais, é pessoal e relaciona-se a outras mensagens como resultado da conversação entre o sujeito e seus interlocutores. Os interlocutores interagem, não ficam mais isolados num silêncio imóvel como o exigido para a leitura de um livro, nem se caracterizam em uma audiência passiva como a dos espetáculos promovidos pela mídia de massa.
O Brasil gosta de conversar em rede
Na sociedade conectada, os brasileiros se destacam entre aqueles que mais utilizam o computador para a comunicação. A maioria da população brasileira (53%) já acessa a internet, e a atividade mais realizada pelos internautas brasileiros é se comunicar – é o que indica a pesquisa CETIC.br (2012).
CETIC.br <http://www.cetic.br>CETIC.br – Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação – é responsável pela produção e divulgação de indicadores e estatísticas sobre o uso da internet no Brasil. As pesquisas conduzidas pelo CETIC.br fazem parte das atribuições do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que por sua vez é o responsável por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e ao desenvolvimento da internet em nosso país. Os estudos de monitoramento e avaliação do impacto socioeconômico das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) servem de referência para a elaboração de políticas públicas, por exemplo, para garantir o acesso da população às TICs. |
A predileção dos internautas brasileiros pela comunicação não é fato novo: desde 2005, ano em que as pesquisas do CETIC foram iniciadas, identifica-se que a comunicação supera as demais atividades, dentre elas a própria busca por informações, que inclui o uso de sistemas como Google. Os resultados dessas pesquisas caracterizam o comportamento dos internautas brasileiros, que estão dentre os maiores grupos de usuários de sistemas de conversação, principalmente os sistemas de redes sociais.
Segundo pesquisas da comScore e da Nielsen, o Brasil é o terceiro país com maior número de usuários do Facebook, só superado pelos Estados Unidos e pela Índia. No final de 2013, o Brasil alcançou a marca de 80 milhões de usuários.
comScore (2012) e Nielsen (2012)comScore e Nielsen são empresas especializadas em realizar pesquisas de análise de mercado. A Nielsen abrange pesquisas sobre diversas mídias e hábitos de consumo. A comScore é especializada na análise do mercado digital. |
A atividade de comunicação não é somente a mais popular, mas é, principalmente, a atividade em que os usuários passam mais tempo realizando, superando em muito as horas gastas em outras atividades como, por exemplo, a busca de informações. Os brasileiros são os que passam mais tempo usando sistemas de redes sociais: cada usuário utiliza o Facebook por cerca de 9 horas mensais, muito acima do tempo que dedicamos mensalmente a outros sistemas, como o Google, o qual em média utilizamos por 3 horas e 45 minutos por mês.
Os brasileiros adoram conversar, seja nas filas, ruas ou por telefone. Rapidamente os brasileiros se apropriaram dos sistemas de redes sociais e nos tornamos um dos principais usuários de sistemas como Orkut, Twitter e Facebook. Usamos tanto os sistemas de redes sociais no nosso cotidiano que o brasileiro já até adquiriu o hábito de se comunicar pelo computador ao mesmo tempo em que realiza outras atividades enraizadas em nossa cultura, como assistir a jogos de futebol e novelas pela televisão. Durante esses programas, o brasileiro tem por hábito comentá-los com outras pessoas em serviços de microblog.
Todas essas pesquisas evidenciam que somos um povo que gosta muito de conversar. Mas não somos a exceção. Essa predileção é o que caracteriza a nossa sociedade contemporânea. Todos esses dados confirmam a necessidade de investirmos esforços para compreendermos melhor os sistemas e os meios de conversação.
Conversação em vez de Comunicação,
Computação em vez de Computador
Antes de terminarmos este capítulo, queremos explicar a terminologia que adotamos no título desse capítulo e ao longo de todo o livro, pois atualizamos dois termos da clássica denominação Comunicação Mediada por Computador (CMC), que se refere aos estudos sobre os fenômenos emergentes do uso de sistemas computacionais para apoiar a conversação humana, focando tradicionalmente nos aspectos técnicos (sistemas e serviços computacionais), linguísticos (linguagem que emerge nesses meios), culturais (novas práticas) e sociais (estabelecimento e ressignificação das relações sociais).
“Comunicação” é um termo muito abrangente e tradicionalmente associado aos meios de comunicação de massa, em que um emissor envia uma mensagem (um conteúdo televisionado, um programa de rádio, uma notícia impressa) para vários receptores-espectadores, estabelecendo uma comunicação unidirecional, por difusão, sem a interação entre os sujeitos envolvidos nesse processo. Já o termo conversação é tradicionalmente associado à conversação face-a-face, ao diálogo, à interação estabelecida entre interlocutores – os sujeitos são ao mesmo tempo emissores e receptores das mensagens trocadas entre eles. Embora no século passado a conversação já pudesse ser mediada por tecnologias como o telefone e a carta, foram as redes de computadores que potencializaram essa interação. Portanto, neste livro preferimos adotar o termo conversação por caracterizar melhor e restringir o nosso objeto de estudo: os meios que possibilitam a conversação entre os interlocutores. Cabe ressaltar que os estudos clássicos sobre CMC também enfocam os meios de conversação da internet, sendo investigados os fenômenos emergentes desses meios, como ausência da interação face-a-face, conversação assíncrona, anonimato, privacidade, comunidades virtuais, conversação entre multidões, dentre outros.
“Computador” é o outro termo de CMC que sentimos a necessidade de atualizar, e adotamos o termo computação. O computador – originalmente concebido para realizar cálculos e posteriormente para processar dados – a partir do desenvolvimento das redes de computadores tornou-se uma importante tecnologia a serviço da conversação e interação humana, a mais importante do nosso século, de alcance mundial, a que está modificando profundamente a nossa sociedade. Contudo, o termo computador atualmente já não dá mais conta da diversidade de tecnologias digitais que possibilitam a conversação.
Um smartphone dificilmente é reconhecido como um computador pelo cidadão comum. Mais difícil ainda é reconhecer os objetos inteligentes como computadores; geralmente são reconhecidos como os objetos que são: Smart TV, GPS, Lousas Digitais, etc. O termo computador geralmente é associado aos equipamentos específicos e exclusivos para realizar computação, como o mainframe, desktop, laptop e tablet. A computação, contudo, não se realiza apenas nesses equipamentos especializados; a computação também se realiza nos brinquedos eletrônicos, nos robôs, no micro-ondas, na geladeira inteligente, na automação das casas (domótica) e em qualquer coisa que processe eletronicamente dados digitais. A tendência contemporânea é a Internet das Coisas, também conhecida como computação pervasiva ou ubíqua. Assim, preferimos adotar o termo computação porque nosso estudo não se restringe somente aos meios conversacionais implementados no que se reconhece tradicionalmente como computador; nosso estudo também abrange a conversação realizada pelo smartphone ou pela Smart TV, e provavelmente se aplica a qualquer outro equipamento eletrônico usado para estabelecer uma conversação.
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