Cuidado! Você está sendo usado diariamente e talvez nem esteja percebendo. Somos usuários de sistemas de conversação, mas quem de fato é usado? Somos disputados por esses sistemas e cada vez somos mais dependentes do seu uso. Quantas pessoas conseguem passar um dia inteiro sem serem usadas por um desses sistemas?
Se trouxéssemos uma pessoa dos anos 1950 para nossos dias, ela notaria de imediato algumas diferenças para a sua época. Hoje passamos várias horas por dia interagindo por meio de sistemas como Facebook e, graças aos meios de conversação implementados nesses sistemas, muitos até trabalham de suas casas, o que era praticamente impensável àquela época. O modo como nos comunicamos, o fato de estarmos vivendo numa sociedade conectada o tempo todo a partir de diversos dispositivos e em diversos locais, é uma das diferenças mais notáveis em relação ao século passado. Trocamos mensagens pelos sistemas de redes sociais, enviamos um email para o colega de trabalho, conversamos com um parente distante por vídeo, enviamos recados pelo celular, participamos de comunidades de interesse para discutir o assunto do momento e comentamos as postagens de um blog.
Cabe ressaltar a diferença entre sistema computacional e meio de conversação. O Facebook é um sistema (de rede social), enquanto o email é um meio de conversação (em que se estabelece a troca assíncrona de mensagens textuais entre duas ou poucas pessoas). Um sistema é um programa que roda num dispositivo eletrônico; já um meio de conversação é uma abstração, um modo específico de trocar mensagens. Um meio de conversação, como o email, é implementado em um sistema computacional, como o Facebook. Alguns sistemas são especializados em um único meio de conversação, outros implementam vários meios integrados, como exemplificam os atuais sistemas de redes sociais que disponibilizam diversos modos de trocar mensagens entre os usuários. A integração de meios de conversação num sistema é uma tendência contemporânea – até sistemas originalmente projetados para possibilitar um único meio de conversação, ao longo de sua evolução passaram a implementar outros meios, como exemplifica o Gmail que, além do email, atualmente possibilita a troca de mensagens instantâneas e a videochamada.
Embora a conversação mediada pela computação seja um fenômeno social relativamente recente, os sistemas e os meios não surgiram do nada, nem de repente, muito menos por acaso. São frutos de uma evolução.
O que é a perspectiva evolucionista?
O objetivo deste livro é apresentar uma perspectiva evolucionista dos meios de conversação e dos sistemas que os implementam. Mostramos a importância desses meios e sistemas para a sociedade contemporânea e, para compreender sua evolução, apresentamos conceitos, métodos, modelos e leis, propondo uma sistematização. Partimos da analogia com a evolução dos seres vivos, transpondo e revisitando seus conceitos. É como se os sistemas fossem seres vivos, a cultura fosse o ambiente onde os sistemas vivem, e os usuários fossem os recursos pelos quais competem os sistemas de uma determinada espécie. Os meios e os sistemas de conversação evoluem como qualquer outra tecnologia, sendo a evolução um resultado de inovações e de influências de tecnologias pregressas.
Evolução das tecnologiasApesar das tecnologias possuírem características e objetivos específicos que as diferenciam uma das outras, no que se refere à evolução todas elas têm este ponto em comum: são construções da mente humana e resultados de diversas influências (Kroeber, 1923). |
Essa perspectiva contrapõe a visão criacionista na qual uma tecnologia surge como uma invenção de um gênio solitário sem levar em consideração as influências em seu projeto. Ao compreender como os meios e sistemas evoluíram, é possível entender melhor o estado da arte, perceber tendências, identificar corretamente os meios e analisar a competição entre os sistemas que implementam um mesmo meio.
A perspectiva evolucionista é importante para evitar alguns erros conceituais como os que já até nos acostumamos a escutar na mídia: fulano é o pai do email, sendo esta uma afirmação que reflete uma visão criacionista; ou que os sistemas de redes sociais vão acabar com o email, quando de fato sequer competem entre si.
Quem é o pai do email?
A mídia e até alguns pesquisadores e historiadores apontam Ray Tomlinson como o pai do email – consideramos este um erro decorrente da perspectiva criacionista sobre o desenvolvimento de sistemas e das tecnologias em geral.
Contribuições de Ray TomlinsonRay Tomlinson desenvolveu, em 1972, um sistema operacional chamado TENEX contendo um aplicativo de email, o SNDMSG, que possibilitava o envio de mensagens pela rede ARPANET (precursora da internet). Uma contribuição foi a composição do endereço eletrônico com a identificação do usuário separada pelo símbolo @ da identificação do servidor (antes as caixas postais eram identificadas por números). |
Neste livro desmistificamos algumas crenças e corrigimos alguns equívocos sobre os meios de conversação. A falta de compreensão de que esses meios evoluem resulta em mitos como a necessidade de encontrar um pai para uma tecnologia, a figura de um criador ou inventor cuja imagem é vendida como o único responsável pela existência daquela tecnologia, como se a tecnologia pudesse ser criada do nada num instante.
Defendemos que é preciso adotar a perspectiva evolucionista. No caso específico do email, é preciso considerar que na década de 1960 já eram trocadas mensagens em redes locais a partir de terminais conectados a um sistema instalado em um único computador (mainframe). Ray Tomlinson, sem dúvida, contribuiu para a evolução do email, mas é equivocado considerá-lo o criador desse meio de conversação ignorando todos os sistemas anteriores que já implementavam esse meio.
O Facebook vai substituir o email?
O título do nosso livro – do email ao facebook – é uma provocação, pois se tornou comum futurólogos anunciarem a extinção do email e sua substituição pelos sistemas de redes sociais, dentre os quais se destaca o Facebook. O Facebook não substituirá o email porque não compete com ele. Os competidores do Facebook são outros sistemas de redes sociais, como o Orkut, que já foi líder de uso no Brasil e foi superado em 2011 pelo Facebook e extinto em 2014; ou o Myspace, que já foi líder do mercado nos Estados Unidos e que também sucumbiu ao Facebook. Esses sistemas têm objetivos e características semelhantes e por isso disputam por usuários, que são os recursos de que necessitam para sobreviver. A competição entre esses sistemas ocorre porque um usuário geralmente prefere usar apenas um dentre os sistemas que têm o mesmo objetivo. Contudo, o email não é um sistema de rede social, mas sim um meio de conversação que se encontra implementado em diversos sistemas, inclusive no Facebook. Ao usar o serviço Mensagens do Facebook, os usuários estão usando o email implementado nesse sistema de rede social. Não há competição entre eles. Pela perspectiva evolucionista, o que vem ocorrendo é uma especiação decorrente de nichos específicos: pelos sistemas de redes sociais são enviadas cada vez mais mensagens de email para amigos e demais conhecidos, enquanto os sistemas especializados em email continuam sendo adotados como meio de comunicação oficial nas organizações.
Outra afirmação que frequentemente aparece na mídia é que o Facebook está mudando a sociedade. É inegável que o Facebook é um grande fenômeno social desde o início da década de 2010, tendo alcançado 1 bilhão de usuários ativos em 2012. Mas o processo de mudança cultural em nossa sociedade é gradual. Quando os computadores foram colocados em redes, ainda no fim da década de 1960, estava sendo desenvolvida uma nova plataforma de convivência que desde então começou a transformar a nossa sociedade. Em 1973, a troca de mensagens por email ocupava 75% de todo o tráfego da ARPANet (precursora da internet). Desde então, diversas outras tecnologias, como computador pessoal, protocolos, interface gráfica, internet e a web, contribuíram para influenciar os sistemas computacionais que implementam os meios de conversação. Portanto, para compreender o sucesso do Facebook, também é preciso considerar a evolução do hardware das câmeras digitais e celulares, que possibilitou o aumento considerável do compartilhamento de conteúdo; a evolução da transmissão de dados, que possibilitou maior velocidade de conexão para esse compartilhamento; e a evolução dos diversos meios de conversação, que encontram-se atualmente implementados de forma integrada no Facebook. Outros sistemas que implementam meios de conversação, precedentes ao Facebook, como os sistemas de BBS (Bulletin Board Systems) na década de 1980, o IRC (internet Relay Chat) na década de 1990, e os mensageiros instantâneos na década de 2000, também foram fenômenos de popularidade e contribuíram para o estabelecimento de uma cultura de uso dos meios de conversação da internet. A própria evolução dos sistemas de redes sociais, em particular, não começou com o Facebook – desde a década de 1970 já havia sistemas para comunidades virtuais, como a USENET e The Well. Todas essas tecnologias influenciaram nossa cultura contemporânea. Portanto, não consideramos correto afirmar que o Facebook é o sistema que mudou a sociedade. A sociedade já vinha mudando com todas as tecnologias que foram sendo desenvolvidas ao longo da história anterior ao Facebook, e certamente continuará em curso de mudança nos próximos anos e com os outros sistemas ainda por vir.
Como este livro está organizado
No próximo capítulo discutimos as tecnologias de comunicação e a história cultural da humanidade; e nos capítulos seguintes abordamos:
- CMC (Comunicação Mediada pela Computação): discutimos as tecnologias de comunicação e a história cultural da humanidade enfatizando como os meios de conversação da internet estão transformando nossa sociedade contemporânea;
- Taxonomia: levantamos quais são os meios de conversação da internet, quais os critérios que possibilitam diferenciá-los, e como classificar os serviços de conversação implementados nos sistemas;
- Evolução: discutimos como os meios de conversação evoluem;
- Seleção: caracterizamos como ocorre a seleção dos sistemas que implementam meios de conversação, visando explicar o que leva ao sucesso ou fracasso do sistema;
- Ecossistema: abordamos as interações entre os sistemas e o ambiente, e apresentamos estudos populacionais dos sistemas em termos de popularidade em determinado período, perfil de usuário, localização geográfica e plataforma de desenvolvimento;
- História: a partir da perspectiva evolucionista apresentada nos capítulos deste livro, (re)contamos a história dos meios de conversação, não como uma lista cronológica de fatos e de criadores, mas sim como um processo evolutivo.
Assim como fizemos neste livro, o arcabouço conceitual sobre a evolução dos seres vivos tem sido transposto para diversas outras áreas para analisar outros fenômenos, como a evolução das tecnologias, do design e da cultura. Nossa contribuição é restrita a desenvolver essa perspectiva evolucionista para o domínio dos meios de conversação da internet.
Este livro é fruto de quatro anos de pesquisa, tendo início com uma dissertação de Mestrado em Sistemas de Informação (Calvão, 2012) cujos resultados parciais foram publicados no livro Sistemas Colaborativos (Pimentel et al., 2011) e em artigo (Calvão et al., 2012).
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